Postado por Autismo em Dia em 04 de agosto de 2021.
O autismo na sociedade, do leve ao severo, ainda é um assunto muito novo. E, quase sempre, o foco são as crianças. Porém, hoje vamos falar da questão do autismo leve em adultos através do ponto de vista da Vânia Felix. A carioca de 32 anos recebeu o diagnóstico tardiamente e, com isso, começou a se dar conta do quanto o autista na fase adulta tem, de fato, sua condição anulada por outras pessoas.
Ela, que é esteticista e estudante de biomedicina, conversou com a gente sobre vários assuntos. Vânia nos contou como foi sua infância, sua adolescência, assim como sua atual fase adulta. O autismo, para ela, nunca foi algo fácil de lidar e, muitas vezes, a deixou vulnerável e se sentindo incompreendida. O fato de descobrir o autismo tão tarde deixou marcas que ela carrega até hoje.
Apesar de tudo isso, ela deu jeito: estudou, encontrou seu espaço no mercado de trabalho, casou duas vezes e teve uma filha. Quer saber como foi esta trajetória? Acompanhe com a gente.
A menina cresce.
“Eu só comecei ler aos 10 anos”, conta Vânia sobre algumas coisas que a faziam ser “a garota estranha” durante a infância e a adolescência. A tal da estranheza também incluía casos de enurese noturna. E é assim que todos a viam, mas, naquela época, ninguém ao redor de Vânia suspeitavam do autismo.
A suposta estranheza vinha também do fato de ela não ficar muito à vontade com o contato humano. Beijar, abraçar, fazer amizades e olhar nos olhos não faziam parte do seu comportamento. Além disso, como ela nos contou, de vez em quando aconteciam episódios de raiva.
Foram anos de uma vida reclusa e incompreendida até que a irmã de Vânia começou a estudar psicologia. Assim, a irmã se deu conta de que Vânia provavelmente se encaixaria no transtorno do espectro autista. Logo, ela recomendou que Vânia fosse avaliada por uma equipe de profissionais.
“Quando ela disse isso eu fiquei com raiva. Eu tinha uma visão totalmente estereotipada do que era o autismo. Pensava que só existia o autismo severo. Por isso, relutei muito em procurar um especialista. Mas então conversei com meu marido e ele disse que, se era pra eu ter uma vida melhor, que eu fosse”, conta Vânia.
E, de fato, Vânia relata que, depois do diagnóstico, ganhou qualidade de vida. Tudo graças às terapias e medicamentos aos quais se submeteu.
O apoio da família.
Caçula de 5 irmãos, Vânia conta que sempre teve suas dificuldades muito protegidas pelos irmãos. Eles sempre buscaram ajudá-la, por exemplo, no aprendizado, já que o modelo convencional de ensino que ela frequentava nem sempre funcionava.
“Eu nunca aprendi igual às outras crianças da escola. Eu inventava minhas próprias maneiras de aprender. Quando eu não conseguia, eu repetia a série. A leitura, por exemplo, foi e é um desafio para mim até hoje. Eu tenho uma leitura péssima e uma memorização que precisa ser adaptada”, conta.
Vânia afirma, ainda, que seus irmãos a protegeram até mesmo do preconceito e a ajudaram a construir relações saudáveis, apesar das dificuldades.
“Na hora de brincar, meus irmãos sentavam comigo. Se alguém implicava comigo, eles iam lá me defender. Eu tive uma base grande de amparo. Eu comecei a perceber mais as diferenças em relação ao aprendizado. Lembro que minha mãe chegou a me dar água de chuva porque diziam que ajudava a criança a falar mais rápido. E eu, naquela época, já estava com idade avançando e não falava nada. Como eu não era autista de grau severo, cresci achando que não tinha nada de diferente comigo”, diz.
Adaptação.
Trabalhar, casar, fazer amigos, ter um filho. O que, para muitas pessoas – principalmente as neurotípicas – parece algo natural, para Vânia, que é adulta e tem autismo leve, tudo isso exige muito esforço. Principalmente na relação com a filha e com o marido.
“Eu tenho sentimentos, mas nem tudo eu consigo demonstrar. O que acaba sendo estranho para a minha filha. Ela hoje tem 9 anos e já entende um pouquinho mais da minha situação. Mas eu tento, todos os dias, dar o meu melhor para demonstrar que eu estou ali, que eu estou me relacionando como mãe. Ela mesmo fala que às vezes parece que eu não ligo para ela, que eu sou estranha.
Mas é que eu sou assim. Não sou de amores, de abraços e, portanto, não gosto que as pessoas me toquem. Me dá uma agonia como se eu estivesse sufocada. Mas por mais que seja algo difícil para mim, eu sabia que tinha que me esforçar para não parecer que eu não sinto nada.
Meu convívio é basicamente com duas amigas e a minha família. Essa coisa de longos papos olhando as pessoas nos olhos, eu não consigo. É como se a pessoa estivesse me olhando nua.”
Sobre relacionamentos amorosos.
Vânia enxerga que sua condição de autista no ponto de vista dos relacionamentos amorosos é facilitada pelo fato de ser mulher.
“Eu tive outros namorados antes de eu me casar a primeira vez. Mas por eu ser mulher, é mais fácil. É cultural que os homens cheguem para conversar. E eu não precisava fazer nada, só consentir. E foi sempre assim comigo. O primeiro casamento não deu certo porque eu era muito difícil. Por isso, decidimos nos separar. Mas em seguida eu já conheci meu atual marido que entendeu que eu era ‘estranha’, mas era legal.
É uma situação difícil, mas já estamos juntos há 14 anos. No início quase nos separamos, ele achava que eu não gostava dele. Questionava porque eu não demonstrava e eu não sabia explicar. Todo mundo se adaptou ao fato de eu ser muito prática nos momentos que exigiriam um pouco mais de intimidade, carinhos, beijos e outras coisas“.
Vários estudos já relacionaram um alto índice de depressão, ansiedade e síndrome do pânico em autistas. Em especial, adultos cujo diagnóstico seja leve. Em resumo, podemos afirmar que esta é uma condição onde o indivíduo autista tem consciência maior de suas limitações e vive a frustração à flor da pele. ¹
Vânia é uma dessas pessoas. Atualmente, ela não tem nenhum transtorno mental associado ao autismo, mas se posiciona totalmente contra a ideia de invisibilidade pelo qual o autista adulto passa.
Explicando mais claramente como isso acontece, podemos citar algo recente que aconteceu com Vânia na faculdade.
Ela precisava preencher um formulário importante e, por não entender o que uma das perguntas significava, errou a resposta. Ao pedir na administração do local um recurso para refazer, argumentou de todas as formas possíveis. Vânia enviou até laudos médicos.
A faculdade só respondeu depois do fim do prazo, inviabilizando o que era para ser feito. O que mais marcou Vânia foi que eles alegaram que se ela teve dificuldade, que tivesse pedido ajuda.
“Eu pedi ajuda, mas não fui ouvida. Precisei expor minha condição, que é algo que eu nem gosto de fazer porque as pessoas me olham e pensam “ahn?”. O e-mail da faculdade foi extremamente constrangedor e humilhante. É por isso que eu penso que, em algumas situações, é melhor a gente mascarar, é melhor pedir pro médico trocar a medicação. Pra gente tentar seguir normal. A sensação de impotência é muito grande“.
O autista adulto e o mundo.
“Acho que a maior dificuldade que nós temos”, continua Vânia, “é com relação à nossa aparência física e o mundo. Por mais que a gente se esforce, por mais que a gente se dedique, a conta não fecha e nunca vai fechar. Para o mundo, como o autismo leve em adultos é o que menos aparenta, significa que você não tem dificuldades.
Eu fico muito frustrada quando eu tento alguma coisa e eu não consigo. Como se eu nadasse muito pra chegar no final do oceano, mas eu sei que nunca vou chegar. E as pessoas cobram que a gente aja com normalidade. É como se a gente recebesse uma sentença de fracasso.
A questão do trabalho e da faculdade são, ainda, outro desafio. Você está numa sala de aula com pessoas inteligentes, descoladas, que sabem fazer. Você se sente inferiorizado só pelo fato de estar ali, de saber que não é igual. Todo dia é uma dificuldade para levantar da cama. Eu tenho que demonstrar e fazer coisas que eu não sei demonstrar ou fazer.
Me lembro de quando me mudei de casa, por exemplo. Eu fiquei umas 5 horas olhando para aquela bagunça sem conseguir colocar um livro em cima da mesa porque parecia que aquela bagunça não era minha. Até que minha irmã chegou e disse ‘senta, calma, eu vou te ajudar’.
Mas, no geral, as pessoas não entendem a gente. Falam e fazem coisas que machucam. Por isso, nem todo mundo na minha família sabe da minha condição. É muito mais fácil dizer que você não vai em uma festa por qualquer desculpa do que ter que explicar a verdade“, conclui.
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